Tempo de duração, tempo mediado
Característico das vídeoinstalações de Elisa Pessoa é o modo como a artista faz falar o medium que mobiliza. Os materiais que adota são variados: a película super 8, as câmeras de mini dv, a câmera fotográfica analógica, e, neste último trabalho, a câmera Canon, 5D markII, atuam como medium ao lado de móveis, divisórias, ossos e montes de terra. Em Tempo de duração, os ossos e a terra no chão despertam a atenção para a dimensão material das imagens projetadas, garantindo-lhes certo “estatuto de coisa”, como notou Mammì sobre o trabalho de Tacita Dean. Os temas das projeções de Elisa Pessoa são espaços vazios de horizonte estendido: uma floresta coberta por brumas, uma estrada, uma vasta plantação de arroz transgênico, um longo pôr do sol em ocre, laranja e preto, o olho de um bezerro em extremo close. As tomadas sucedem-se umas às outras e têm duração variada, de 9 a 15 minutos. Por conta dessa diferença, as projeções formam sempre novas combinações de imagens.
Ao fundo temos um repertório de horizontes que nos captura e sugere a busca intermitente do olhar. Dessa busca resta a linha percebida nas imagens projetadas ao redor da sala. Mesmo no olho do bezerro em close, a linha do horizonte é dada pela cerca que o contém – e evoca a “tentativa de fazer ver o tempo”, como descreve Pessoa o registro sistemático que fez dos horizontes nos Pampas, na fronteira do Brasil com o Uruguai. Logo, o horizonte pode ser também percebido na disposição em observar longamente que o longo close exige. Sensibilizando-nos assim, pela visualização do tempo que o trabalho de Pessoa proporciona, aos detalhes que podem ser percebidos em cada imagem. Aos poucos percebe-se que um segundo jamais é igual ao outro, que uma imagem pode ser abruptamente interrompida por um caminhão vermelho que atravessa a estrada rumo ao sul.
O tempo que o espaço do horizonte evoca está presente nas quase imperceptíveis piscadelas do bezerro e na brancura dos ossos dispostos no chão semicobertos de terra. Não que esteja ali representado, mas o modo como os diferentes media se encontram no espaço da exposição intensifica um presente por uma experiência de natureza estética. Os demais elementos da exposição que acompanham as projeções, têm por intuito enfatizar a materialidade das imagens projetadas, distraindo-nos do que poderia estar eventualmente nelas representado. Uma viagem ao sul do país, a adaptação a um ambiente mais seco e mais frio, as caminhadas com a câmera na bolsa, a montagem do tripé, a procura do foco no horizonte, a entrega da duração da tomada à técnica. Também durante o processo de registro das imagens expostas a artista faz falar o medium, pois a mecânica da Canon que a acompanha é suscetível ao ambiente como a textura digital da grafia do tempo que realiza. Isso porque ela encerra suas tomadas sozinha, segundo a variedade de detalhes de uma cena ou da temperatura ambiente, tem autonomia sobre os cortes de suas tomadas.
Desse modo o tempo é grafado onde quase não atua: no deitar do sol, na manhã de um bezerro, nas estradas dos Pampas, num campo semeado aguardando a colheita. Pois o registro das imagens em movimento – cinematografia – onde quase não há movimento termina por dissolver a autoria daquela que busca “fazer ver o tempo” na variação da luz natural e na autonomia dada à câmera nos cortes das tomadas. Se o gesto inicial de Pessoa é o de “fazer ver o tempo”, colocá-lo diante dos olhos, ele se torna real ao confirmar essa impossibilidade. Ele se aproxima do gesto de Tarkovsky, que evitava a montagem eisensteiniana, enfatizando o tempo cru do plano tal como captado. “O filme vive no tempo se o tempo vive nele”, dizia Tarkovsky. E daquele de Warhol diante do Empire State building, que, após o pôr-do-sol rosado atrás do edifício, retrata uma longa noite de oito horas.
É aqui que percebemos um importante ponto de inflexão no trabalho apresentado na galeria Mario Schemberg, no espaço Funarte, em São Paulo, relacionado à atenção dada ao medium na trajetória da artista. O tempo se coloca como tema, em planos fixos produzidos por câmeras que geram imagens cuja saturação nossas retinas usualmente associam a reportagens televisivas, à internet, a documentários e a semelhantes tipos de registros reconhecidos por sua habilidade de representar, sem intermediários, o que está sendo visto, apesar dos planos instáveis, da edição intermitente e do foco variável. Embora as imagens de Pessoa desfrutem de saturação semelhante, elas mudam apenas o necessário para que seja sugerida uma lentidão raramente experimentada. A reprodução de longos planos fixos pela mobilização de um medium que costumamos associar a planos curtos e fragmentados gera certo descompasso, certa estranheza entre a textura do real e o que nele não cabe, no tempo que, ao fim, não é capturado, mas que está ali presente a todo momento, da duração das tomadas às metáforas do horizonte.
A beleza do trabalho de Pessoa deriva da fusão entre o medium e aquilo que ele reproduz. Isto é, a reflexão sobre o tempo, que o título do trabalho sugere, não está no que as imagens possam eventualmente conter, mas num vazio de sentido, por essa razão criativo, que as projeções e as carcaças de animais dispostas no chão proporcionam. Por isso ele não representa uma determinada ideia de tempo, que estaria guardada nas longas tomadas, no olhar do bezerro ou no pôr do sol. Mas, pela ênfase que dá ao medium, “faz ver” o tempo por uma experiência sensível, pela intensificação de um presente percebida na artesania das imagens de Tempo de duração. Desse modo é tecida uma poética do vazio, na qual se busca a ausência de sentido e de significados para que novos sentidos e significados possam surgir. Não à toa, o vazio, no qual toda significação é suspensa, surge com alguma frequência na poética de Pessoa. Uma poética do vazio, do espaço e do nada que, contudo, pela experiência que proporciona, preenche de significação possível os espaços projetados e sugeridos na exposição. De modo que o vazio remeta ao cheio, o nada ao tudo, o não-ser ao ser, o tempo não capturado ao tempo que, por não se deixar capturar, faz-se presente.
Renata Bellicanta Sammer